Arquitetura

Entrevista: “Os bens brasileiros estão protegidos legalmente, mas sofrem ameaças”

Instituto de Arquitetos entrevista o coordenador geral do ArquiMemória 5 e um dos relatores do UIA2020RIO, Nivaldo Vieira de Andrade Junior.

Passados 80 anos da institucionalização da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil, muito foi realizado na área, a exemplo da criação Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O órgão tem hoje representação em todas as unidades da Federação, que possui também órgãos e legislação estaduais voltadas à preservação do patrimônio. Entretanto, há bastante trabalho pela frente. Para entender o cenário atual e futuro da preservação do patrimônio edificado, o IAB entrevistou o coordenador geral do ArquiMemória 5 e um dos relatores do UIA2020RIO, Nivaldo Vieira de Andrade Junior. Leia a íntegra da entrevista a seguir:

Instituto de Arquitetos do Brasil: Os bens edificados brasileiros estão protegidos?

Nivaldo de Andrade: Os bens brasileiros estão, em sua maioria, protegidos legalmente, através de instrumentos como o tombamento (no caso do patrimônio material) e do registro (no caso do imaterial), porém nem todos os bens tombados, por exemplo, estão de fato protegidos contra ameaças como o abandono ou a descaracterização. Por exemplo: o Brasil foi pioneiro, no mundo, na preservação da arquitetura e do urbanismo modernos, com o tombamento da igreja da Pampulha, em 1947, e de uma série de obras relevantes da chamada “escola carioca”, nos anos seguintes, além de Brasília, cuja inclusão na lista do Patrimônio Mundial da Unesco, há 30 anos, foi um acontecimento inédito. Entretanto, frente às dimensões continentais do país e aos reduzidos orçamentos e diminutas equipes dos órgãos de preservação, os desafios ainda são imensos. Em primeiro lugar, muitos bens tombados não estão, de fato, sendo preservados. Na zona rural – e mesmo em alguns centros urbanos -, alguns edifícios tombados estão se arruinando pela ação do tempo e pela falta de ações efetivas para a sua preservação; nas grandes metrópoles, por sua vez, a pressão imobiliária tem levado à descaracterização de sítios históricos tombados ou do entorno de monumentos protegidos, através da construção de edifícios que rompem à paisagem que deveria ser preservada. Em Salvador, por exemplo, conseguimos barrar o La Vue, uma imensa torre de apartamentos que alteraria radicalmente o entorno do Outeiro de Santo Antônio da Barra, tombado pelo IPHAN. Porém, não tivemos o mesmo sucesso com a Mansão Wildberger, construída aos fundos da Igreja de Nossa Senhora da Vitória, também tombada pelo IPHAN e que alterou a sua legibilidade.

IAB: A importância da preservação do patrimônio é um tema assimilado por toda a sociedade?

NA: Eu acredito que sim, embora ainda haja muito desconhecimento, por parte de setores da sociedade, da importância da preservação do patrimônio, e mesmo de como o patrimônio pode ser utilizado como ferramenta para o desenvolvimento econômico e social. Acredito também que faltam ações de sensibilização patrimonial (ou “educação patrimonial”, expressão que considero infeliz) voltadas a promover o entendimento, por parte dos gestores e usuários do patrimônio, dentre outros, dos seus valores e da importância da sua preservação.

IAB: A globalização e expansão do capital gera mais riscos ao patrimônio ou oportunidades?

NA: Acho que os dois. A globalização permite, por exemplo, que tenhamos acesso às experiências exitosas de conservação urbana realizadas em Cuba ou na França; às discussões teóricas e conceituais promovidas em Roma ou Cidade do México; e à tecnologia do laser scanning, que permite medir e produzir modelos em 3D de edifícios históricos com uma qualidade excepcional em pouquíssimo tempo. A globalização também promove o turismo, que pode contribuir positivamente para a preservação do patrimônio, como se pode ver em cidades como Paris, Florença ou Cusco. O problema é quando não há um equilíbrio e o turismo de massa transforma cidades e sítios históricos em parques temáticos. Foi o que se tentou fazer no centro histórico de Salvador nos anos 1990 e, de certo modo, o que vem provocando uma série de problemas urbanos em cidades como Veneza. As hordas de turistas em Veneza – ou mesmo em muitas áreas de Paris – resultam em uma cidade cara, onde o cidadão comum não consegue mais viver. Os aluguéis aumentam, o preço da carne no açougue da esquina também. Isso quando o açougue não fecha para dar lugar a uma loja de suvenir. A vida se torna insustentável devido ao turismo, quando a atividade deveria contribuir para a sustentabilidade do patrimônio. Um exemplo bem atual: a recente propagação mundial de um determinado serviço online de reserva de hospedagem resultou em uma redução absurda nas ofertas de aluguel para longos períodos em cidades como Paris e Berlim, dado que o proprietário percebeu que lucraria muito mais alugando seu imóvel por dia nesses sites do que na forma tradicional, com contratos de aluguel a longo prazo. Em Paris, por exemplo, chegaram a existir 40 mil ofertas de hospedagem no AirBnb! Essa situação resultou numa grande redução na oferta de aluguel para longa duração e, consequentemente, num aumento exponencial dos preços, face à imensa procura. A Prefeitura de Paris, então, criou uma série de leis para disciplinar o setor, limitando, por exemplo, a quatro meses por ano o aluguel através desse tipo de site.

IAB: O cenário da preservação do patrimônio edificado, desde o primeiro ArquiMemória, em 1981, até hoje melhorou ou piorou?

NA: É complicado afirmar se melhorou ou piorou, pois são contextos muito diferentes. O que ocorreu, sem dúvida, foi que este cenário mudou, e por diversas razões. Em primeiro lugar, houve uma ampliação e diversificação imensa, desde então, do acervo patrimonial no Brasil. A partir da primeira metade dos anos 1980, o IPHAN passou a realizar o tombamento de uma série de exemplares da arquitetura industrial, cujo valor cultural não havia sido reconhecido até então. Alguns exemplos são a Caixa d’Água de Pelotas e a Fábrica de Vinho Tito Silva em João Pessoa, sendo que o tombamento desta última incluiu não só a edificação, mas também a maquinaria. Esses tombamentos demonstram que patrimônio cultural não é apenas a arquitetura monumental, ligada às classes mais abastadas, mas também o espaço de produção, as construções e os equipamentos do trabalho cotidiano. Foi também apenas a partir dos anos 1980 que exemplares de outras correntes da arquitetura moderna brasileira passaram a ser protegidos, como as casas modernistas de Warchavchik e as obras de Lina Bo Bardi em São Paulo (MASP, Casa de Vidro e SESC Pompéia), ou o Elevador Lacerda, elemento de ruptura no Centro Histórico de Salvador, e a Vila Serra do Navio, planejada no Amapá pelo arquiteto paulista Oswaldo Bratke para abrigar os trabalhadores da mineração de manganês. Foi também nos anos 1980 que ocorreu o tombamento do Terreiro da Casa Branca, em Salvador, representando o reconhecimento da relevante contribuição das religiões de matriz africana à cultura brasileira. De lá para cá, outros sete terreiros foram tombados pelo IPHAN, não só em Salvador, mas também em São Luís do Maranhão e em outras cidades baianas, como Cachoeira e Itaparica. Em segundo lugar, a partir dos anos 1980 diversos municípios brasileiros incorporam nas suas políticas públicas a questão do patrimônio cultural que, até então, ficara a cargo das instâncias Federal (através do IPHAN) e estadual (através dos órgãos estaduais de preservação criados, principalmente, nos anos 1960 e 1970). Assim, diversos Municípios, especialmente nas regiões Sul e Sudeste – mas não só – criam órgãos e legislações voltados à preservação do patrimônio cultural, muitas vezes articulados com a legislação urbanística, além de criarem, em alguns casos, leis de incentivo à preservação, como as que garantem redução ou mesmo isenção de IPTU para proprietários de imóveis tombados que os mantêm em bom estado de conservação. Uma terceira mudança relevante ocorrida nas últimas três décadas é relativa à importância do uso (e do reuso) do patrimônio edificado. Não basta tombar nem restaurar, pois essas ações só resultarão na efetiva preservação do imóvel se elas estiverem acompanhadas da sua utilização, mesmo que para usos absolutamente distintos daqueles para os quais ela foi concebida. Assim, velhos conventos são transformados em hotéis de alto padrão, antigos galpões industriais são convertidos em museus e edifícios diversos usos são adaptados em centros culturais. A reutilização do patrimônio traz a questão da qualidade do projeto para o centro das discussões sobre a preservação do patrimônio e coloca para os arquitetos o grande desafio de conciliar a preservação dos valores culturais à adequação aos novos usos. Quando se é bem-sucedido neste processo, como no já citado caso do SESC Pompéia de Lina Bo Bardi, a arquitetura decorrente da intervenção é um híbrido muito mais interessante e rico em significados que o edifício preexistente. Por fim, um quarto aspecto, não menos importante: de 1981 para cá, a pesquisa acadêmica no campo da preservação do patrimônio foi ampliada exponencialmente, e dezenas de teses de doutorado e dissertações de mestrado sobre o tema são defendidas anualmente, em todo o Brasil. A quantidade de conhecimento produzido sobre o tema no país hoje é imensamente maior que nos anos 1970 ou 1980, o que dá a eventos como o ArquiMemória uma outra dimensão.

IAB: Quais desdobramentos o ArquiMemória 5 espera levar para o UIA2020RIO?

NA: O ArquiMemória 5 adota como tema “O global, o nacional e o local na preservação do patrimônio” justamente em função do tema do UIA2020RIO, que é “Todos os mundos. Um só mundo. Arquitetura 21”. As questões que pretendemos discutir no ArquiMemória dizem respeito justamente a esse difícil equilíbrio, na contemporaneidade, entre ser local (os distintos mundos, cada um com suas singularidades) e ser global (um só mundo, resultante dos intensos fluxos de pessoas, ideias, informações, mercadorias e investimentos), que é também o tema do UIA2020RIO. Especificamente no campo da preservação do patrimônio edificado, organizamos essas reflexões em três eixos temáticos: a circulação de conceitos e teorias; a relação entre instituições e sociedade nas escalas global, nacional e local; e as questões relativas à tecnologia e projeto, seja no âmbito da formação, seja no da prática profissional. Os palestrantes já confirmados refletem um pouco os temas que queremos discutir. O arquiteto Andrea Bruno, com uma sólida formação italiana, foi diretor de um dos mais importantes cursos de especialização de restauro da Europa, em Louvaina, na Bélgica, tem projetos na Itália, França, República da Geórgia e Chipre e atua, há décadas, como consultor da Unesco no Afeganistão. Um caso claro de atuação transnacional, com todos os desafios decorrentes de intervir em contextos culturais tão distintos. Atualmente ele está envolvido na discussão sobre o futuro do sítio de Bamyian, no Afeganistão, após a trágica destruição pelo Taliban, em 2001, das duas estátuas gigantes de Buda. Já o coletivo equatoriano Al Borde desenvolve, desde 2012, um projeto muito interessante chamado “Casa em construção”, em um antigo casarão no Centro Histórico de Quito. Trata-se de um novo método de restaurar e reabilitar um edifício histórico, no qual os arquitetos são, ao mesmo tempo, proponentes, projetistas, executores e usuários. O imóvel não pertence ao coletivo, e o aluguel é “pago” ao proprietário através dos aportes efetuados por eles, que incluem do projeto arquitetônico à realização da obra, pois eles literalmente “metem a mão na massa”. Os materiais utilizados na intervenção são, em grande parte, reutilizados, como pneus e pedaços de madeira e de vidro; boa parte é também resultante de doações. Enfim, uma forma de intervenção inovadora, experimental e adaptada à realidade de um país em desenvolvimento, que resulta em uma arquitetura bastante peculiar. Esse projeto já ganhou diversos prêmios internacionais. Outro palestrante confirmado é o arquiteto baiano Paulo Ormindo de Azevedo, que tem uma contribuição importantíssima na preservação do patrimônio no Brasil. Doutor em Restauração de Monumentos pela Universidade de Roma La Sapienza, Paulo Ormindo conhece profundamente o restauro “à italiana”, mas também sabe das especificidades da preservação do patrimônio nos países em desenvolvimento, pois, além da atuação no Brasil, foi por longos anos consultor da Unesco em países como Peru e Cabo Verde. Nos seus projetos de intervenção em edifícios e sítios de valor cultural, como o Centro Cultural Dannemann em São Félix, na Bahia, estão lado a lado as referências à arquitetura tradicional ibérica (na adoção do pátio central) e à arquitetura moderna italiana (em diversos detalhes arquitetônicos), ao mesmo tempo em que ele reinterpreta a cultura tradicional do Recôncavo baiano, da coluna que remete a um pilão à cobertura em telhas cerâmicas. A arquitetura de Paulo Ormindo é, ao mesmo tempo, global e local.

Sobre Nivaldo Andrade

bens brasileiros

É arquiteto e urbanista e doutor em arquitetura e urbanismo pela UFBA, onde é professor na graduação, no mestrado e no doutorado em arquitetura e urbanismo e no mestrado profissional em conservação e restauro. É membro do Conselho Superior do IAB e do Conselho Deliberativo do ICOMOS Brasil, além de, junto com Cêça Guimaraens, representar o IAB no Conselho Consultivo do IPHAN. É coordenador-geral do ArquiMemória 5 e, a convite do IAB, um dos relatores do UIA2020RIO, junto com Elisabete França e Margareth Silva Pereir.

 

 

Via IAB

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